OMS desmente Trump e afirma não haver evidências de que paracetamol na gravidez tenha ligação com autismo
24/09/2025
(Foto: Reprodução) O paracetamol está entre os medicamentos isentos de prescrição mais vendidos em vários países — inclusive no Brasil
Getty Images
A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou nesta quarta-feira (24) que não há evidências científicas conclusivas que liguem o uso de paracetamol durante a gravidez ao autismo. A declaração foi feita após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fazer esta relação.
A organização afirmou, ainda, que todo medicamento deve ser usado com cautela na gravidez e recomendou que grávidas sigam os conselhos dos profissionais da saúde.
"As causas exatas do autismo não foram estabelecidas, e entende-se que há múltiplos fatores que podem estar envolvidos", disse em nota.
Na última segunda-feira (22), Trumop afirmou que o órgão que regula medicamentos e alimentos nos EUA, a FDA, notificará os médicos dos riscos do medicamento.
A Comissão Europeia afirmou nesta terça-feira (23) que não existem evidências científicas que relacionem o uso de paracetamol durante a gravidez ao risco de autismo.
Especialistas também confirmaram ao g1 que não há evidências científicas que comprovem esta relação de causa e efeito. (Veja abaixo).
💊O paracetamol é um dos analgésicos e antitérmicos mais consumidos no mundo, usado para tratar dores e febre. Ele também é reconhecido por ter uso seguro na gravidez, já que as gestantes NÃO devem usar anti-inflamatórios não esteroidais, como o ibuprofeno.
No caso do paracetamol, apesar de ser seguro e poder ser usado sob prescrição médica por grávidas, o risco de impacto do uso do remédio no desenvolvimento fetal vem sendo cada vez mais estudado.
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⚠️Pesquisadores, no entanto, afirmam que NÃO existe evidência conclusiva de que o uso da droga na gestação provoque autismo.
Tylenol na gravidez e autismo: o que se sabe
Nos Estados Unidos, o medicamento é vendido sob o nome comercial de Tylenol, produzido pela farmacêutica Kenvue, que foi desmembrada da Johnson & Johnson em 2023. A empresa inclusive afirmou na segunda-feira que “não há base científica” para a associação feita por Trump.
O Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia afirmou que "estudos realizados no passado não mostram evidências claras que comprovem uma relação direta entre o uso prudente de paracetamol durante qualquer trimestre e problemas de desenvolvimento de fetos".
Já as diretrizes do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido afirmam que o paracetamol é a "primeira escolha" de analgésico para tratar gestantes. "É comumente tomado durante a gravidez e não faz mal ao bebê", afirmam as diretrizes britânicas.
O que é o autismo?
O autismo não é uma doença. É uma condição do desenvolvimento neurológico, conhecida como transtorno do espectro autista (TEA), que se manifesta de formas muito diferentes em cada pessoa.
Ela pode incluir atrasos na linguagem, na aprendizagem ou nas habilidades sociais e emocionais. Para algumas pessoas, o autismo profundo significa não falar e ter deficiência intelectual, mas a grande maioria das pessoas no espectro apresenta efeitos muito mais leves.
Segundo a literatura médica, o transtorno do espectro autista decorre de alterações no desenvolvimento do cérebro durante o início da vida. Nas últimas duas décadas, cientistas realizaram também estudos rigorosos e em larga escala para determinar se algum aspecto da vacinação poderia causar autismo. Nenhum deles mostrou qualquer ligação entre o desenvolvimento do espectro autista e os imunizantes administrados durante a gravidez ou após o nascimento.
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Os diagnósticos de autismo aumentaram nas últimas décadas por dois motivos principais: a definição da condição se ampliou, com critérios médicos mais abrangentes e melhores triagens, e houve maior busca por avaliação, impulsionada pela maior divulgação do tema e pela oferta de apoio educacional nas escolas.
Diagnósticos x prevalência
O secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr. vem classificando o aumento dos casos como uma "epidemia". Cerca de 1 em cada 36 crianças foi identificada com transtornos do espectro autista em 2020 – um salto em relação a 2000, quando a taxa era de 1 a cada 150 crianças, de acordo com dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA.
Especialistas lembram que é preciso diferenciar o que é um aumento da prevalência do aumento do número de diagnósticos. Além disso, entender que o diagnóstico de autismo envolve hoje critérios diferentes, considerando dificuldades mais leves, antes não consideradas.
E ter o diagnóstico hoje leva a serviços que não existiam no passado. Por isso, mais pessoas estão indo atrás do diagnóstico, o que não significa que existem hoje mais casos na população em geral do que no passado.
“Claramente há um aumento expressivo do número de diagnósticos. Mas não é claro se há um aumento do número de pessoas afetadas na população. Hoje, o diagnóstico é feito com outros critérios (não usados no passado), que inclui pessoas com habilidades e dificuldades mais leves do que no passado”, explica o psiquiatra de crianças e adolescentes e professor de Psiquiatria da USP Guilherme Polanczyk.
Pesquisadores entendem ainda que a genética explica cerca de 85 a 90% da expressão do transtorno do espectro autista e que os fatores ambientais responderiam pelo restante. Por isso, as medicações não poderiam modificar as causas genéticas.
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A preocupação com o paracetamol
Polanczyk explica que investigar uma possível ligação entre o uso de paracetamol na gestação e o autismo é algo complexo. Isso porque o medicamento é de venda livre, o que dificulta medir a real quantidade utilizada pelas gestantes. Além disso, o consumo de paracetamol pode estar associado a outras condições, como infecções, que por si só também podem ter relação com o risco de autismo.
Ele ressalta que estudos menores, ao longo do tempo, encontraram uma associação discreta. Mas é importante diferenciar: associação não significa, necessariamente, que exista uma relação de causa e efeito. Ou seja, o fato de haver correlação não prova que o uso do remédio provoque autismo.
"O maior estudo que a gente tem é da Suécia, do ano passado, e avaliou mais de duas milhões de pessoas. Quando você considera possíveis ‘confundidores’, ou seja, retira o efeito desses outros fatores, não existe mais a associação. Por isso, de fato, não parece haver uma relação de causa e efeito”, explica o psiquiatra.
O especialista cita o estudo que foi publicado na revista científica "JAMA". Ele analisou dados de quase 2,5 milhões de crianças na Suécia para investigar se o uso de paracetamol durante a gravidez estaria associado a maior risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual. Nas análises gerais, houve uma pequena elevação nos riscos (entre 5% e 7%), mas as diferenças absolutas foram mínimas — por exemplo, um acréscimo de 0,09 ponto percentual no risco de autismo aos 10 anos.
No entanto, quando os pesquisadores compararam irmãos nascidos da mesma mãe — uma estratégia que ajuda a eliminar influências genéticas e ambientais compartilhadas —, as associações desapareceram. Não houve evidências de que o uso do medicamento aumentasse os riscos de transtornos do neurodesenvolvimento, nem mesmo em diferentes faixas de dose. A conclusão é que os sinais encontrados em estudos anteriores provavelmente se devem a fatores de confusão, como as condições de saúde que motivaram o uso do paracetamol, e não a um efeito causal do remédio.
Por sua vez, a administração Trump citou uma revisão publicada em agosto de 2025 na revista científica "Environmental Health" que analisou 46 estudos sobre o uso de paracetamol na gravidez e possíveis efeitos no desenvolvimento neurológico das crianças. Conduzido por pesquisadores de Harvard, o trabalho encontrou indícios de associação do medicamento com maior risco de TDAH ou autismo em parte das pesquisas, mas outras não confirmaram essa relação.
Como os estudos são observacionais, com limitações na forma de medir a exposição e possíveis fatores de confusão, os autores optaram por não calcular um risco único. A conclusão é que há sinais consistentes em parte das evidências, mas sem prova de causalidade, e que o paracetamol continua sendo o analgésico mais indicado na gestação — desde que usado na menor dose e tempo possível, sempre com orientação médica.
Brasil lidera disseminação de fakes
O vice-presidente da Autistas Brasil e pesquisador em desinformação sobre autismo Arthur Ataide Garcia defende que Trump esteja usando o autismo como “combustível para uma cruzada política que não tem nada a ver com ciência ou inclusão”.
“É sintomático quando figuras como Robert F. Kennedy Jr., escolhido por Trump para liderar a saúde, afirmam sobre nós, autistas: ‘crianças que nunca vão pagar impostos, nunca terão um emprego, nunca escreverão um poema, nunca terão um encontro, muitas nunca usarão o banheiro sem ajuda’. Esse tipo de fala nos reduz a estereótipos cruéis. Trata as pessoas autistas mais vulneráveis como se fossem menos dignas de viver”, lamenta Garcia.
O pesquisador defende que, em vez de se preocupar mais em procurar causas “miraculosas” ou inventar “curas” para o autismo, é necessário investir em políticas públicas de emancipação, educação inclusiva e cuidado humanizado.
“Hoje, finalmente, grupos historicamente invisibilizados começam a ter acesso ao diagnóstico. O perigo é que essa lógica importada dos Estados Unidos já começa a ganhar força no debate nacional”, diz Garcia.
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As evidências limitadas sobre a leucovorina
Além da fala sobre o paracetamol, Trump defendeu o uso da leucovorina — uma forma de ácido fólico já indicada em alguns tratamentos contra o câncer — como possível terapia para sintomas de autismo. O governo americano não apresentou novo estudo de eficácia que embasasse a recomendação do uso.
A FDA anunciou oficialmente a aprovação de uma versão da leucovorina fabricada pela britânica GSK, que havia sido retirada do mercado anos atrás por motivos comerciais.
Assim como a leucovorina, diversas outras substâncias estão sendo avaliadas para o tratamento do autismo. Polanczyk destaca que as evidências sobre a leucovorina ainda são limitadas e não seria “seguro” dizer que é possível indicar o medicamento como o tratamento para o autismo com a evidência que temos hoje.
Como o autismo é uma condição muito heterogênea, duas pessoas podem desenvolver autismo em função de problemas em genes diferentes, ter alterações cerebrais diferentes e comportamentos diferentes, ainda que algumas similaridades façam com que as duas tenham um diagnóstico de autismo.
O fato de pessoas com autismo poderem ser essencialmente diferentes faz com que pesquisadores dificilmente acreditem que uma medicação seja eficaz para tratar os sintomas principais dessas pessoas.
“Mas a gente tem muito que avançar. É possível que a gente tenha janelas de desenvolvimento da criança em que é importante que esteja lá o tratamento. Eventualmente, uma vez se passando esse período, se perde a janela e a medicação ou a intervenção pode não ter mais o efeito”, acrescenta Polanczyk.
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